Músicas geradas por IA e tocadas em lojas rende debates entre artistas e associações; entenda
Trilha do consumo: Lojas investem em músicas geradas por Inteligência Artificial Don L ficou surpreso quando ouviu uma trilha sonora um pouco diferente em uma...

Trilha do consumo: Lojas investem em músicas geradas por Inteligência Artificial Don L ficou surpreso quando ouviu uma trilha sonora um pouco diferente em uma loja de utensílios do lar na qual ele fazia compras. O rapper tentou usar um aplicativo que reconhece músicas para tentar descobrir de quem eram aquelas, que tinham uma levada de Gilberto Gil e Jorge Ben Jor. Mas com "uma letra esquisitaça, tentando ser uma coisa de empoderamento feminino de um jeito super tosco", segundo ele explicou ao g1. O aplicativo não encontrou nenhum resultado. O Google também não identificou nenhuma fonte quando o artista jogou trechos da letra no buscador. Assim, Don L entendeu que as faixas tocadas ali eram geradas por Inteligência Artificial. "E eu fiquei tipo, cara, isso é muito doido, porque literalmente é um roubo perfeito. É um crime perfeito." Don L não foi a primeira pessoa a compartilhar vídeos em estabelecimentos comerciais usando músicas geradas por IA. O argumento, segundo os usuários que fizeram postagens semelhantes nas redes, seria o de que os lojistas estavam tentando não pagar os direitos autorais aos artistas. Algo que o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) nega. Em entrevista ao g1, órgão garantiu que fará normalmente o recolhimento de direitos autorais em estabelecimentos comerciais que colocam músicas em seu ambiente, independentemente do que for tocado. "O Ecad vai encaminhar o boleto para cobrança", garante Isabel Amorim, superintendente do escritório. Lojas estão investindo em músicas geradas por IA como trilha para compras Adobe Stock O coordenador-geral do Conselho de Segurança Cibernética e de Dados Pessoais da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), Luiz Augusto D’Urso, também declara que não há intenção, por parte dos comerciantes, de burlar o pagamento do Ecad. Mas ele alerta que, pela falta da previsão legal, "não há nenhum impedimento da criação de uma música por IA e a utilização desta sem a necessidade de recolher o pagamento do Ecad". Recentemente, a Ri Happy foi cobrada pelo Ecad pela falta de pagamento de direitos autorais das músicas tocadas em suas lojas. A empresa criou uma rádio com músicas geradas por IA e voltada para uma experiência personalizada para seu público, que são crianças e famílias. Em maio, ao Painel S.A., a Ri Happy afirmou que "não tem dívida [com o escritório] porque as canções usadas foram produzidas por meio da inteligência artificial, e não seriam registradas e protegidas por direitos autorais". O g1 procurou a Ri Happy, mas não teve retorno até a última atualização desta reportagem. O tema gera muitas dúvidas e controvérsias. Por exemplo: Quem é o autor de uma música gerada por inteligência artificial? O lojista é obrigado a pagar? Se o recolhimento de direitos autorais vai ser feito, conforme cita o Ecad, para quem irá o valor arrecadado? Se a música é gerada através de uma base de dados musicais, pode ser considerada plágio? Para responder essas e outras perguntas, e explicar todas as pontas dessa questão envolvendo músicas geradas por IA em estabelecimentos comerciais, o g1 conversou com representantes do Ecad, da Associação Comercial, de direito e da música. Antes de saber o que eles falam, entenda como funciona a arrecadação de direitos autorais em estabelecimentos comerciais: Um grupo de técnicos visita e cadastra estabelecimentos comerciais (restaurantes, bares, supermercados, hotéis, lojas, entre outros) que têm música ambiente; Esses estabelecimentos, independentemente do tamanho, precisam pagar o direito autoral das músicas que estão sendo tocadas; Existe uma tabela para o cálculo do valor que cada estabelecimento deve pagar. Uma loja de bairro, por exemplo, pagará um percentual bem menor do que um shopping. Em média, os boletos enviados pelo Ecad variam de R$ 50 a R$ 5.000. O pagamento por parte dos estabelecimentos é mensal; Depois de arrecadado, o valor é distribuído para os artistas que têm suas músicas executadas nesses estabelecimentos; Para isso, a equipe de distribuição do Ecad faz uma medição por amostragem do que é tocado nos ambientes. E através dessa amostragem, é distribuído o valor para os titulares das músicas (fator que gera muitas controvérsias entre músicos, já que não há um controle exato do que é executado em cada estabelecimento). Entenda como funciona a arrecadação de direitos autorais Bruna Azevedo/g1 Posição do Ecad: arrecadação continua; distribuição é o desafio Segundo o Ecad, essa forma de arrecadação citada acima seguirá sendo feita mesmo para músicas geradas por IA. O escritório considera que qualquer execução pública de música exige licenciamento, e que essas obras geradas por IA são fundamentalmente reproduzidas com base em músicas existentes e protegidas. "Quando a gente faz um prompt [instrução dada pelo usuário aos programas de IA] para ela gerar algum conteúdo para gente, vemos que ela bebe, obviamente, de tudo que já existe do que é protegido. Você pode pedir um estilo, um tipo de ritmo, trechos de música...", cita Isabel. A dúvida que ainda paira pelo escritório é sobre como será feita a distribuição. Alguns modelos propostos são inspirados em mercados internacionais. Um deles, aposta na divisão entre o criador do prompt e o criador da música base da criação (os titulares protegidos por obras licenciadas). Uma associação alemã também decidiu repartir o valor arrecadado entre todos os titulares da base dela. A decisão aqui no Brasil depende das sete associações que são donas do Ecad e de aprovações do marco regulatório da inteligência artificial, que está sendo debatido no Congresso Nacional após aprovação no senado. Nele, há um tópico que obriga os desenvolvedores das plataformas que geram músicas por IA a fornecer as fontes de suas criações. Enquanto isso, a solução do Ecad para rastrear e contemplar os "artistas-fonte" seria sem tecnologia. "A gente tem o nosso time interno, pessoas internas, que conhecem muito e sabem dizer. Temos um maestro que já fez vários pareceres para nós. A música tem compassos, tem toda uma métrica, que o maestro consegue identificar muito bem." Artistas alegam plágio e questionam futuro da criatividade Rapper Don L Reprodução/Instagram Don L é contra essa forma de análise humana citada pelo Ecad. E não por achar que músicos e maestros não têm capacidade ou conhecimento suficientes. Mas porque muitas coisas na música têm autoria coletiva. "Um bom exemplo disso é o funk. A gente não sabe quem inventou, porque a criação do funk é tão coletiva, que um DJ inventa uma parada, o outro acrescenta outra, o outro coloca outra... quando você vê, os estilos, a cada mês, já são outra coisa." "Então quem é que vai receber esse dinheiro, que é de uma criação coletiva, quando forem as máquinas criando?", questiona. Para ele, com essa forma de distribuição e análise "vai acabar indo mais dinheiro para quem já tem muito dinheiro e muita arrecadação". Ou seja, os grandes artistas. "É muito complicado porque você não tá trabalhando com um plágio específico de 'ah, essa música é muito parecida com essa'. Você tá trabalhando com uma máquina que pegou cinco ou 10 criações, tentando imitar a criação humana." Para Don, a inteligência artificial, quando usada como forma de fazer o trabalho criativo humano, é sempre um plágio. "Plagio de diferentes fontes. E além disso, vai ser uma limitação da criatividade humana, porque ela se limita ao que já existe, ao que já foi inventado." Don L acredita que o debate sobre músicas criadas por IA é urgente e ele pretende iniciar uma conversa entre artistas. O rapper diz que não é contra o uso de inteligência artificial e que pode ser uma ferramenta muito legal de criação. Mas ele analisa que o que está acontecendo nessas produções é que os robôs estão fazendo o trabalho humano na parte criativa. "Acho que a gente tem que tomar uma atitude para que não seja permitido utilizar música totalmente feita em inteligência artificial ainda no Brasil. Isso pode desmantelar toda uma cadeia produtiva, e fazer muito mal para nossa música que já é tão fragilizada por diversos aspectos culturais no Brasil." Mas por que as lojas estão recorrendo à música com IA? Fãs podem investir em catálogos musicais através de plataformas de fundos de investimento Adobe Stock/IA Personalização de marca e baixo custo são os principais motivos para os lojistas optarem por músicas geradas por inteligência artificial. Além disso, ela pode ir de encontro com a "trilha do consumo", algo que já é bem pensado por muitos estabelecimentos comerciais. Quando você entra em um supermercado, por exemplo, e a trilha te traz sensação de paz e bem-estar, não é por acaso. O empresário quer que o consumidor permaneça mais tempo no local e aumente o valor das compras. Em contrapartida, alguns locais colocam playlists com batidas mais pesadas. A ideia é fazer com que a rotatividade dos clientes seja mais intensa, já que dificilmente ele consegue permanecer tanto tempo no ambiente por causa do som. Luiz Augusto D’Urso, Coordenador-Geral do Conselho de Segurança Cibernética e de Dados Pessoais da ACSP, diz que o recolhimento do Ecad não é motivação para o uso de músicas de IA. Para ele, o valor pago não é nada significante e já é algo consolidado nas contas do empreendedor. Se for pensar no fator economia, Luiz justifica que a música gerada por IA pode diminuir custos com a contratação de estúdios, músicos, redatores, intérpretes e outros profissionais. "Isso custava muito caro. E hoje não, ele faz com um simples comando", cita Luiz, que apoia a prática desde que o empreendedor use uma inteligência artificial ética. "Que é aquela que não vai simular a voz de um cantor, que não vai tentar cometer atos ilícitos para burlar a previsão do reconhecimento do direito autoral." Luiz destaca que o comerciante, hoje, não tem obrigação de pagar direitos autorais a ninguém. E ainda reforça que, se o Ecad decidir seguir com o recolhimento, eles dependerão do marco regulatório de inteligência artificial para seguir em frente com a decisão. Isso porque os empresários podem questionar para onde vai o recolhimento, se não há a informação exata sobre de quem é a música. "A partir do momento que não tem lei que nos proíba de criar músicas e colocar no seu estabelecimento sem a necessidade de pagar direitos autorais a alguém, você não tem a obrigação de pagamento a nada e pode usar dessa forma, porque a lei não proíbe." "E como ela não proíbe, a premissa é que ela permite." Sem regras para arrecadação, mas com cuidados com a criação Suno é uma das plataformas usadas para geração de músicas por IA Reprodução Enquanto não há definição sobre o marco regulatório de inteligência artificial, é preciso ficar atento com outras regras na hora de criar ou pensar no uso de músicas geradas por IA. Isso porque, se o artista achar que é a fonte daquela obra, ele pode pedir o takedown da música (quando a faixa é retirada das plataformas) ou até abrir um processo contra o usuário da plataforma de IA. Situação semelhante já aconteceu em 2023, mas com obras de arte. Três artistas americanos processaram empresas que geravam arte com IA por violação de direitos autorais. "Um advogado na área tem que ter sensibilidade. Porque às vezes, para o artista, vai valer a pena entrar num acordo. Mas é óbvio que se o artista teve sua voz utilizada sem autorização, vai estar com o poder de barganha alto, porque se ele quiser, ele derruba a música", explica Gustavo. Além disso, caso o criador do prompt peça para que um artista seja usado como base de estilo, ele deve tomar cuidado com a proposta de letra a ser criada. Por exemplo: Um usuário cria o seguinte prompt: "Crie uma música baseada nas obras de uma banda "X", com a voz da vocalista como referência, e que faça apologia a atos criminosos". A banda ou a vocalista podem processar o criador da música gerada por IA por danos morais e abrir um processo criminal. "Se você quiser usar a voz do Chris Martin para fazer uma música sobre 'família feliz' sem autorização, você já está errado. Imagine com relação a um tema absurdo, criminoso", aponta Gustavo. "Isso vai ser completamente rechaçado e vai servir para um cálculo de dano moral, e até um processo criminal. Você está caluniando. Então tem o crime da utilização de propriedade intelectual de elementos que compõem o direito da personalidade, como a voz, sem autorização. E você está atribuindo o crime a terceiro." Regulamentação é fundamental Um ponto de acordo entre todas as partes é a necessidade da aprovação e implementação de marco regulatório robusto para a IA no Brasil. A exigência na transparência sobre a origem dos dados e o esclarecimento de obrigações claras para usuários e desenvolvedores de IA podem ajudar na trajetória das músicas geradas por IA – não apenas em estabelecimentos comerciais. Até que isso aconteça, o desafio sobre a proteção de direitos autorais seguirá complexo e sem todas as respostas. Regulamentação para trabalhos com músicas geradas por IA é fundamental Adobe Stock